sexta-feira, 5 de junho de 2009

A Ilha Grande Fechada: Reflexões

O título da obra de Daniel de Sá Ilha Grande Fechada aponta para uma ideia de um isolamento em que estas ilhas sempre viveram sendo que a emigração era a única escapatória possível. A emigração é o tema central deste romance/novela.
Em sete dias de viagem que são os correspondentes aos das tradicionais romarias quaresmais que todos os anos se realizam em cada freguesia desta ilha, Daniel de Sá dá a conhecer a realidade desta ilha no tempo da guerra colonial em que muitos perderam a vida e, onde os poucos que regressavam com vida, prometiam ir em oração durante aquela semana, quer em agradecimento da benesse recebida – ainda permanecerem vivos - , quer por forma a rogar que não tivessem a infelicidade de ter que voltar para a guerra. Como instrumento desta reflexão está João[1] que, por altura da guerra colonial, havendo sobrevivido aos riscos inerentes a ela ligados, prometera fazer uma romaria quaresmal em forma de agradecimento de pés descalços e a pão e água. Contudo há nele uma vontade em se desprender do isolamento a que estas ilhas sempre estiveram ligadas. É sua vontade partir para o Canadá assim que acabe esta sua jornada. Cansado da vida de lavoura que leva João decide, como tantos outros o fizeram, partir em busca de algo mais que, esta ilha fechada[2] não consegue oferecer. Para Tal decide partir no dia seguinte ao do término da romaria. Esta viagem é o mote para uma reflexão sobre esta vivência fechada que o Açoriano tem e da qual se tenta libertar por meio da emigração para países tão distantes como os Estados Unidos da América e o Canadá. A emigração sempre fez parte da vivencia dos Açorianos. Muitos daqui partiram levando as suas vivências e tradições. Nos Países de acolhimento foram recebidos de braços abertos, estabeleceram-se e prosperaram. Criaram raízes que no futuro continuarão sempre a crescer, contudo há sempre uma ligação à ilha. Ano após ano são aos milhares os que voltam. Cheios de um profundo sentimento de saudade vêm à ilha cumprir promessas, rever a família, enfim, buscam o profundo silêncio que esta ilha ainda tem e que, nem sempre encontram nestas terras de acolhimento. Como João, são muitos os que voltam e integram estas romarias quaresmais. Vários serão certamente os motivos para que retornem. Cada qual sabe o seu mas, o argumento que talvez a eles seja comum, prende-se com o facto de ser difícil organizar este tipo de romaria nestes países de acolhimento pelo simples facto de as distâncias a percorrer serem inevitavelmente diferentes.
Várias questões se levantam com a leitura desta obra. Desde logo a primeira prende-se com o facto de se poder ou não contextualizar esta obra no
cenário da literatura de viagens que se desenvolveu em Portugal com o início das viagens marítimas dos descobrimentos.
Identificando a literatura de viagens como «textos que narram deslocações de indivíduos ou grupos através de espaços mais ou menos dilatados, mesmo quando, recorrendo à imaginação ou beneficiando de uma evocação a posteriori, se afastam em maior ou menor grau de realidade histórica vivida pelos seus autores narradores»[3]. Contudo uma literatura de viagens implica também falar de si através do outro[4].
Considera-se então possível integrar esta obra na literatura de viagens no sentido em que esta tem por base uma viagem empreendida por uma personagem, que se sabe ser ficcional e que indirectamente[5] o narrador/autor propõe que o leitor faça por si uma reflexão sobre a condição de ilhéu em que o Açoriano vive. Ou seja, embora não haja uma reflexão explícita que se traduza nas acções/pensamentos de João, há no entanto um apelo do autor ao leitor para estas reflexões, tendo por cenário esta viagem que é uma romaria quaresmal e, por meio de alguns episódios narrativos que fazem parte da trama da obra que permitem ao leitor conhecer a realidade desta ilha.
Outra questão que se levanta prende-se com o facto de haver uma necessidade em destacar a existência de uma literatura Açoriana ou se existirá apenas uma literatura assente em temáticas Açorianas uma vez que a «existência de uma Literatura Açoriana no quadro cultural da Literatura Portuguesa tem levantado várias questões teóricas de algum tom polémico. A
reivindicação de um carácter açoriano para uma literatura de língua portuguesa não só se tem feito por via das expressividades linguísticas locais (fonéticas e lexicais), como também por aspectos telúricos e de uma natureza insular, como ainda por um protesto do espírito autonómico, que quer ver reconhecida uma identidade. A literatura referida aos Açores seria açoriana em plena significação da palavra se açoriana fosse um adjectivo de nacionalidade. Não sendo os Açores independentes (a nível político ou linguístico), é um adjectivo de impregnação de conteúdo, de referências culturais»[6]. Desta forma, talvez não se possa falar na existência concreta de uma literatura Açoriana uma vez que ainda são poucos os autores Açorianos de renome e que, a nível nacional sobretudo, tenham já cartas dadas. Deste pequeno número de autores destacam-se nitidamente nomes como Antero de Quental, Vitorino Nemésio ou até mesmo Natália Correia. Todo o restante corpo de autores existentes é ainda pouco conhecido do grande público. De entre eles destacam-se sobretudo Dias de Melo, João de Melo[7] e Onésimo Teutónio de Almeida. Desta forma poderá então considerar-se que a temática açoriana é ainda base de uma literatura que lentamente se tem desenvolvido
e que, embora tenha ainda um longo caminho a percorrer, tem certamente boas possibilidades de se desenvolver e ganhar peso a nível nacional.
O conceito de Literatura Açoriana está inevitavelmente associado a um sentimento de independência dos Açores perante Portugal continental e, é sobretudo um factor cultural que vem reforçar esta ideia de independência. Existe sim, ainda, uma literatura que tenta dar a conhecer a cultura açoriana. É neste enquadramento que surge então esta obra de Daniel de Sá. Preocupado com a sociedade e com o individuo, Daniel de Sá, baseando-se num quadro de Tomás Vieira com o mesmo nome, “pinta” a sua versão deste quadro com traços de uma realidade que tão bem conhece, sendo que é natural da freguesia da Maia em S. Miguel.
Há nesta Ilha Grande Fechada um profundo sentido de ilhéu que se espelha nos sucessivos episódios novelísticos que constituem esta obra. Quem nela vive conhece e entende claramente os cenários que Daniel de Sá descreve através de vivências tão características desta ilha.
Com episódios que têm as tradicionais festas de freguesia como cenário de fundo, ou até mesmo com quadros da vida privada das personagens, o leitor é transportado para esta realidade que a ilha é. Quem não conhece esta realidade de perto, certamente terá interesse em a conhecer. Para tal têm contribuído algumas adaptações de outras obras similares que, sobretudo nos últimos vinte anos, foram transpostas para o meio televisivo. Há nesta obra
uma vertente novelística passível de ser transposta para este meio e que, certamente poderá contribuir para que a obra chegue ao grande público.
Já vimos que esta obra poderá ser incluída na literatura de viagens mas, uma vez que Daniel de Sá se limita a utilizar a temática das romarias como ponto de partida para este romance/novela., impõe-se a necessidade de uma reflexão sobre esta temática. Antes de mais, para aqueles que desconhecem esta tradição, sabe-se que terá começado por volta do ano de 1522 aquando da ocorrência de um terrível terramoto que assolou a ilha e que destruiu por completo a então capital Vila Franca do Campo. De forma a “apaziguar a ira de Deus”, grupos de irmãos passaram então a organizar-se todos os anos e a saírem em oração de forma a passarem em todas as igrejas e ermidas existentes na ilha que tivessem a Mãe de Jesus como padroeira. Um facto curioso que só mais recentemente tem sido apontado para que estas romarias ocorram por altura da Quaresma[8] revela que esta tradição se possa ter desenvolvido nesta época pois era uma altura em que não haviam colheitas a fazer nos campos[9] e, como tal, havia maior disponibilidade para que um maior número de fieis pudesse fazer parte destas romarias que se organizavam anualmente. Ainda hoje esta tradição subsiste, embora com pequenas alterações que pouco influenciam a essência e o espírito que nesta
tradição existem. Já são muito poucos os casos em que se pagam promessas de pés descalços ou até mesmo em jejum[10]. Já não existe a dificuldade que havia em outros tempos porque a sociedade evoluiu. Contudo o que fica é que desde 1522 todos os anos por esta altura inúmeros fiéis largam a sua vida por uma semana e dedicam-na à oração e à meditação. No entanto há uma questão que se levanta e que requer uma resposta objectiva. Será esta tradição uma romaria ou uma peregrinação?
Ambas as palavras têm o mesmo significado, ou seja, uma romaria é uma peregrinação ou se preferirmos uma viagem empreendida até locais de oração, neste caso igrejas e ermidas existentes por toda a ilha. Contudo a romaria diferencia-se da peregrinação ao nível sentimental da pessoa. Assim uma romaria apela a um sentido colectivo de oração conjunta. Apela a uma colectividade sentimental de todos os integrantes da romaria. Todos passam
pelas mesmas dificuldades e todos passam pelas mesmas privações. Toda esta envolvência sentimental apela também à inter-ajuda entre irmãos.
Ocorre muitas vezes um irmão estar a sofrer fruto da dificuldade da caminhada. Para aliviar esta dor, há irmãos que se oferecem para levar os pertences daquele irmão que está a sofrer ou então ajuda-se a tratar desse sofrimento com alguma espécie de medicamento ou até por meio de uma palavra amiga. É este sentido colectivo que move a romaria e nele perdura a
tradição. Uma peregrinação será uma viagem pessoal ao interior da pessoa com a envolvência de uma romaria, ou seja, é algo mais subjectivo ao irmão que integra uma romaria. Vai em viagem como todos os outros, sempre em oração, contudo não deixa de fazer uma viagem dentro de si. Será uma viagem psicológica empreendida numa viagem que ocorre ao nível físico. Uma viagem dentro da caminhada empreendida por um individuo onde há lugar para a descoberta de si e do que o rodeia. É neste ponto que Daniel de Sá não toca directamente pelo facto de não haver uma reflexão que se transmita pela voz do personagem principal que participa desta romaria aqui narrada.
A obra que Daniel de Sá criou está ainda fechada ao público. Para que este possa ter conhecimento da sua existência, terá que existir uma definição clara do que representa num panorama literário Açoriano, sendo que um primeiro passo a tomar, poderia certamente ser considerada a hipótese de uma adaptação cinematográfica por forma a despertar consciências para o que de melhor se faz por cá.

[1] João, de quem não se sabe o apelido, é a personagem principal da obra.
[2] S. Miguel.
[3] In CASTRO, Aníbal Pinto de, “Literatura de Viagens”, Biblos, Volume V, [779-790] Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo.
[4] Outro no sentido de semelhante.
[5] No sentido de não haver uma reflexão directa.
[6] In GOUVEIA, Maria Margarida Maia, Literatura Açoriana, 29 de Abril de 2009, http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/enciclopedia/ver.aspx?id=8210.
[7] Embora tenham o mesmo apelido, ambos são de ilhas diferentes. O primeiro é natural da freguesia da Calheta de Nesquim, ilha do Pico, enquanto o segundo é natural da freguesia da Achada ilha de S. Miguel.
[8] Tempo que prepara as festividades da Páscoa por meio da meditação e oração.
[9] Não esquecer que a produção de leite que agora é a principal base económica da região se desenvolveu tardiamente. Por altura destes acontecimentos a principal cultura existente era a do trigo e do centeio que prosperava por grande parte da ilha.
[10] Por força das dificuldades em que se vivia, muitos romeiros faziam as suas promessas descalços e, muitos até, faziam-na a pão e água.
BIBLIOGRAFIA

CASTRO, Aníbal Pinto de, “Literatura de Viagens”, Biblos, Volume V, Editorial Verbo, Lisboa/São Paulo.
FREITAS, Vamberto, O imaginário dos escritores açorianos, Edições Salamandra, Lisboa.
GOUVEIA, Maria Margarida Maia, Literatura Açoriana, 29 de Abril de 2009, http://pg.azores.gov.pt/drac/cca/enciclopedia/ver.aspx?id=8210.
SÁ, Daniel de, Ilha Grande Fechada, Edições Salamandra, Lisboa, 1992.

terça-feira, 2 de junho de 2009